
Imaginação e vontade são os elementos que possibilitam ao artista criar, formar um conjunto de obras que possua um sentimento próprio, construir uma carreira. O percurso de Mazé Mendes, agora que se passaram 20 anos de sua primeira exposição individual, oferece motivos para reflexão. A artista construiu uma história visual que possui muito de pessoal, e está intimamente ligada ao mundo e a seu tempo. A reunião dos seus trabalhos, neste livro, permite conhecer o significado da trajetória que vem produzindo o universo das artes plásticas.
Nascida em Laranjeiras, viveu sua infância e adolescência na pequena cidade de Palmas, no sudoeste do estado do Paraná, a artista conta: “rodeada de fazendas e sítios, colhia pinhão, fazia coleções de sementes achadas no mato e pedras encontradas nos rios, gostava das formas dos cipós retorcidos suspensos nas árvores. Os objetos colecionados e guardados na minha caixa de segredos, incluíam miniaturas do artesanato indígena, de índios descendentes dos kaigangues. Quando criança costuma visitar inúmeras vezes a reserva indígena, com meu pai, e me encantava com as cores, a simetria e precisão destes objetos, meus primeiros referenciais de forma de arte”. Mazé Mendes conserva-se fiel à menina do interior que um dia foi: atenta, enérgica, discreta, reticente em gestos e palavras.
Se a vontade é o dínamo da própria ação humana, para o artista revela-se como essência de sua ação. Em 1969, havia chegado o momento de se cursar a universidade. A exemplo dos irmãos mais velhos, mudou-se para capital. Partiu decidida a estudar Belas-Artes, mesmo sem ter muita certeza do que representava sua escolha. Na realidade, a única certeza que possuía era de sentir-se atraída pela possibilidade de usar sua possibilidade de criar. A mudança significou conhecer um mundo novo completamente diferente. Curitiba estava longe de ser a metrópole que é hoje, mas era uma vastidão, se comparada ao cadinho de sonhos natal. A dinâmica da cidade grande trouxe outros parâmetros, outras prioridades. Trouxe, sobretudo, a descoberta de que sua vida se inseria numa esfera maior, havia muitos desafios a enfrentar.
No nosso país, no final dos anos 60 e início dos 70 correspondeu a um período de forte repressão política. A atividade intelectual passou a ser uma ameaça ao sistema montado pela ditadura militar. A censura e a tortura tornaram-se constantes. Como muitos outros jovens, Mazé de alguma maneira viu-se envolvida (um irmão ficou muito tempo desaparecido e depois exilado). A reação natural da artista foi expressar sua perplexidade, seu posicionamento, através das imagens que criava. “A temática converge para o ser humano, sua narrativa existencial, como fonte de vida e morte,… concentra-se nas expressões fisionômicas transformando-as em máscaras cênicas capazes de revelar o cerne dos conflitos humanos”.
A década de 70 pode ser considerada seu período de formação: a bacharelado em pintura e a licenciatura em desenho, na escola de Belas Artes do Paraná; os cursos de gravura em metal e litografia, no Centro de Criatividade de Curitiba; os ateliês coletivos; as primeiras exposições. A pesquisa das técnicas tornou-se instrumento para o exercício da forma. O tratamento da figura foi transformando-se. Significativamente, a década encerrou-se com uma viagem cultural à Europa, feita em companhia de artistas paranaenses. Momento importante, oportunidade de ver o que conhecia somente através dos livros, fazer descobertas, refletir.
O embate com a figura humana renovou-se, as novas pinturas denotavam preocupação com questões com questões específicas da formação da imagem, da construção da forma. Há tempos, Mazé Mendes sabia-se inscrita num grupo de artistas que “buscam penetrar no sentido exato das coisas… interpretam sua época como seres que a sentem viver dentro de si, que são possuídos por ela”. Aos poucos, foi descobrindo que estar integrada à sua época significa conviver com as questões intrínsecas da arte. Soube reconhecer isto, sentiu necessidade de desbravar caminhos, encontrar soluções.
O desenvolvimento técnico e teórico aconteceu sem forçar ao abandono de elementos essenciais para seu trabalho. Sua fonte de inspiração está ligada ao mundo circundante, suas imagens são criadas a partir de elementos próximos. As referências do dia-a-dia são usadas como pretexto para imagens. Na sua produção dos anos 80, as Figuras em Movimento pertencem a um período de intensa relação com teatro e a dança, são exercícios de percepção da luz, do ritmo alcançado através da linha e da mancha de cor. Na série posterior as Figuras, são reflexões sobre volume, a par de conter alguma possível história. Os Pássaros e Espantalhos são elos de uma constante discussão da forma. O fazer artístico foi levando a “dar maior atenção a questões específicas da cor e do espaço”.
A vida, que foi construindo ao redor de si própria, consegue estar em conformidade com o seu fazer: a casa muito clara, o ateliê, o quintal permitindo contato com a natureza, a oficina de escultura de Alvarez também artista, o interesse dos filhos, a convivência com os amigos. Ao trabalho no ateliê e na oficina de gravura, somou-se o trabalho na universidade. A atividade como professora obriga a constantes pesquisas, a dedicar-se a experimentar. As aulas de análise e técnica de materiais são importantes para o desenvolvimento dos estudantes, futuros professores de arte, mas consistem-se em prazer pessoal de descoberta de particularidades do fazer artístico.
A imaginação é o que leva o artista a redefinir seus paradigmas. Nas pinturas do final da década de 80, foi entre relíquias imaginárias que a artista buscou os elementos que necessitava como referência. Da caixa de segredos de sua infância, retirou as formas das sementes que foram preenchendo suas pinturas, tomando o lugar da figura humana. Aos poucos, “os pequenos objetos ganhavam corpo e passam para o primeiro plano, ocupando todo o espaço da tela”. A abstração veio através destas formas fechadas que exigiram a luz dos planos de cor. Estas geometrias da natureza, certamente estavam presentes, mas foram pinçadas na própria memória visual.
Mazé Mendes percebeu que havia chegado o momento em que seu reconhecimento da arte passava a fornecer repertório para o próprio trabalho, que a realidade circundante estava gravada na própria retina. “De 1990 para cá, a solidão da cor, a busca da sua materialidade na exploração do campo da pintura. A procura da textura, a afirmação gestual, a imposição de linhas” são elementos básicos de seu território visual. A paixão pelo reino da gravura encontra correspondência nos gestos que tramam a pintura. Substanciam-se referências líricas nas suas densidade de linhas, leveza dos pontos luminosos, preenchimento da cor. Os títulos aludem ao efeito de imprimir, ao mesmo tempo que à história da pintura moderna. As impressões Urbanas são formadas por áreas contíguas de cor e luz, criando densas aglomerações. Nas Impressões Caligráficas, os traços fortes são suturas nas camadas cromáticas. Com imaginação e vontade, determina seu espaço de ação.
Cláudio Telles
(Curador, Crítico de Arte).
Brasília, junho de 1997.
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